domingo, 14 de outubro de 2012

Na literatura infantojuvenil existe um elo paradoxal entre o sonho e a realidade, fruto da expansão e despertar da consciência, adquiridos desde a primeira infância até a adolescência, com posterior resgate na vida adulta.

O título Caixeiros Viajantes: Histórias de Vida, Baú de Emoções sintetiza uma história que percorre os caminhos da experiência lúdica. Este panorama aparece transcrito em rimas, trocadilhos, pinceladas de fantasia e pequenas ladainhas que condimentam a obra e ancoram o tema, “uma caixa que surpreende ou faz lembrar”. O imaginário coletivo eclode sob o comando de apenas um protagonista, sugerindo mescla atemporal de fragmentos e recortes situacionais, todos conectados a um propósito: surpreender e fazer lembrar através das palavras.



Caixeiros Viajantes: Histórias de Vida, Baú de Emoções


Cidade de Santa Luz, Cerrado Baiano. Cerca de setenta anos atrás.

Época de seca, estação de sofrimento.

Eu era jovem e livre, mas preso a uma realidade desértica, que encarcerava meus sonhos de menino. Com apenas 8 anos, já sabendo ler e escrever, queria o mundo e não sabia por onde ir, mas tinha por onde começar. E tudo começou na Literatura, a grande arte de reescrever a vida. Única maneira que encontrei para alimentar os desejos de uma mente sonhadora e libertar sentimentos trancafiados.

Pelas manhãs, minhas palavras cantavam esperanças, mas desafinavam nas dores, tentando explicar a solidão e a simplicidade paupérrima de um povo. E a cada noite, ao soprar o lampião, eu apagava da memória os resquícios de mais um dia.

Minha família sou eu, meu irmão mais velho e minha avó, Serafina. Pais, não tenho não. Já foram levados pelas agruras do Cerrado. Sobraram apenas lembranças. Meu irmão, o Tonho, trabalha na roça, mas com a falta de chuva, só nasce desgosto. Vivemos da renda das rendas que minha avó entrelaça, com a graça que Deus lhe deu.

Acho que sou meio frasista, meio poeta. Gosto da rima, da sina, do sino e das igrejas. Santa Luz tem apenas uma igreja. Pequena, frágil, mas de fé inabalável. Além de escrever e prosar, adoro escutar rádio. Até hoje, sou fascinado pela sonoridade das palavras. Achava surpreendente que de uma caixa de madeira forrada com tela, sairiam tantas e tantas palavras: ditas, malditas e benditas. E foi pelo rádio que alertei o povo e a notícia se espalhou: Eram os Caixeiros Viajantes saindo de Salvador rumo ao Cerrado.

Passadas algumas semanas, como em um repente nordestino, a vida mudou por completo. Do horizonte, surgiu um mar de possibilidades, que inundou de felicidades o solo rachado pela estiagem. Mais parecia o começo de tudo, de quem nada tinha à espera do pouco que viria. E veio, ah se veio!

Vindo de longe, no lombo da mula, surge a novidade. O povo grita, canta, como se fora milagre. Eram os Caixeiros Viajantes, desbravadores de uma vida sem fim. Do pampa ao cerrado, traziam doses de alívio, cultura e diversão.

Naquele tempo, o que eu mais queria, era ver as novidades que lá estavam guardadas. As caixas revestidas de couro e adornadas com pedrarias eram o abrigo de muitas especiarias, todas cobertas por um manto vermelho repleto de segredos.

Da voz do mascate, ainda me lembro bem. Gritava alto com todas as sílabas: No-vi-da-de! Tem novidade! Pronto! Chegaram na praça: homens e mulas, ambos teimosos, todos sedentos.

Corre, traz água do poço pro moço, menino! Disse, apressadamente, a pobre Tereza, que mal tinha para beber. A tristeza em pessoa. E os homens bebiam, e as mulas também. Desta vez, com incrível obediência.

A vila parou por alguns minutos para observar o descanso dos viajantes. Ninguém falava, nada se movia. Mas minha mente seguia elucubrando em voz alta: Eu também tenho sede, mas minha secura é outra. Tenho sede por palavras.

Enquanto os sulcos da pele dos viajantes eram irrigados, eu fitava os recipientes ainda pendurados no lombo do animal. Meu pensamento ganhava asas, e as caixas ganhavam vida.

Sempre gostei de caixas. Caixas de música, muito raras aqui no Cerrado. Caixas de frutas, eu vejo algumas em época de chuva. Caixa de ferramentas, tem uma lá no celeiro. Caixa de correio, estas só na cidade grande. E tem até as caixas-fortes, dizem que guardam muito dinheiro. Mas minha primeira caixa foi a de engraxar. Dentro dela, guardava mais que apetrechos de trabalho, levava comigo a esperança de dias melhores e, ao contrário dos bancos, os poucos tostões que conseguia. Ahn, guardava também os inseparáveis lápis e bloco de anotações. Talvez por isso tenha parado de engraxar, percebi que escrever era mais emocionante. Afinal de contas, escrevendo eu poderia ser qualquer herói ou personagem, inclusive eu mesmo. Falando em ser eu mesmo, com a propriedade da palavra, voltemos aos Caixeiros.

Os Mascates, já restabelecidos, começaram a ofertar de tudo. A cada frase rimada, algo do baú era vendido. E não é que o reclame funcionava!

Minha freguesa, estimada senhora: olhe tudo, compre tudo, mas não perca a hora. E a mulher comprava, feliz da vida.

Caro senhor, prezado cavalheiro: trago cadernos, trago ternos e canetas tinteiro. E o homem comprava, feliz da vida.

Venha cá menina, ouça pequena: tenho brinquedos, conto segredos e aquele poema. E a menina comprava, feliz da vida.

Venha cá menino, escute garotão: tenho bola de pano, tenho piano e um avião. E o menino comprava, feliz da vida.

Se aproxime moça, venha devagar: o espelho de louça reflete o brilho do mar. E a moça comprava, feliz da vida.

Escute rapaz, jovem trabalhador: trago medalhas, trago sandálias e um barbeador. E o rapaz comprava, feliz da vida.

Vale rimar, pechinchar, só não vale pendurar. Retrucavam os mascates repentistas. O burburinho foi diminuindo, minha curiosidade aumentando e os baús esvaziando. Quando cheguei mais perto, percebi que era tarde demais. Arregalei meus olhos afundados pela magreza, mas nada havia além de panos de cetim.

Não sobrou nada, menino. Em seis meses a gente volta com mais novidade, falou o mascate. E o inevitável aconteceu. Lágrimas desenharam um pedido de súplica, que escorreu por minha face ainda incrédula. E o improvável também aconteceu. Compadecido, o mascate olhou-me por alguns segundos e disse: Veja bem menino, o choro é chuva que lava alma. O que você quer eu não tenho não, todos os brinquedos já foram vendidos. Só me resta este livro, finalizou o homem. E num piscar de olhos, troquei as lágrimas por um sorriso geométrico. Alguns segundos de paralisia e a certeza: um livro, tudo o que eu sempre quis.

Menino! Você quer ou não quer o livro? Insistia o homem. Quanto? Perguntei de imediato, num ato de coragem. Nada não. Teu choro ajudou no pagamento, a outra parte é pela água que matou minha sede.

Menino, mas qual é o seu nome? Fernando, respondi com incomparável orgulho. Meu pai disse, antes de morrer, que foi em homenagem a um tal de Fernando Pessoa, grande escritor. Hoje, sou uma pequena pessoa chamada Fernando. Mas sei que tenho muito por crescer.

Eita menino que escorrega nas palavras! Pegue este livro. Dizem que é a última moda lá na capital, cidade grande tem muita gente estudada, filho. Quando percebi, o livro já estava em minhas mãos. Era nada mais, nada menos que A Caixa de Pandora. Depois das cartilhas escolares, foi o primeiro e mais especial livro da minha vida.

Daquele momento em diante o tempo parou. Os mistérios da Caixa de Pandora foram sendo revelados. Nos trilhos da imaginação, minha fantasia percorreu a dramaticidade do mito unindo passado, presente e futuro com a velocidade de um vagão desgovernado.

Quando jovem, dentro da minha caixola, haviam muitas dúvidas. Porém, de uma coisa eu tinha certeza, a vida é feita de desafios e muitas surpresas. E para efeito de lembrança, vou digitar em caixa alta o desfecho dessa narrativa:

HOJE, DEPOIS DE ABRIR MUITAS CAIXAS E ESCREVER TANTAS HISTÓRIAS, PREFIRO OS BAÚS. ESPAÇOSOS, ELES RESISTEM AO TEMPO E AS LEMBRANÇAS DE UMA VIDA SEM FIM.