quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

QUANDO O CALOR MATA

Três Contos Acefalobráquicos

Domingo, 22 de outubro de 1976.

Região metropolitana de Porto Alegre, zona leste, 01h37min da madrugada.

Faz excessivo calor, digo senegalês.


O CONTEÚDO A SEGUIR É FRUTO DE UMA MENTE CRIATIVA.
SUA CONCEPÇÃO: DESPROVIDO DE BRAÇOS, PERNAS E CABEÇA.


Talvez, devido a uma relevante conduta do "nada sei e nada vi", até agora, pouco se sabe dos misteriosos pedidos de ajuda que ecoavam nos corredores A e B deste colosso de concreto.

Da aparente sensação de calma, a fúria repentina. Assim eram as vazias tardes e as interrogativas e angustiantes noites do senhor Alcides, 63 anos, porteiro do Residencial Goethe.

Ao entrar no sufocante saguão deste edifício, já se comprova, através da parafernália documental, exposta no balcão de identificação, que este senhor, apresenta leve e inofensivo quadro de esquizoidia. O denso vai e vem matinal tentava compensar o drama que o irritante silêncio invariavelmente trazia noite após noite. Por já não aguentar a individualidade sonora do tic tac do seu relógio, o vagaroso Alcides, decide estrear seu novíssimo rádio FM estéreo. A musicalidade acalma este cansado homem que, de vez em quando, pensa que o calor, que sufoca e aterroriza seus dias, ainda poderia matar alguém.

Dia 28 de Outubro, 23h59min proximidades do corredor A do Residencial Goethe, andares altos, ouve-se um triplo e amplificado estampido de arma de fogo, seguido de um assustador urro de dor. O múltiplo abrir e fechar de portas anuncia-se. Cabeças elasticamente curvadas invadem os corredores, e, através das suas visões periféricas, captam instantâneas do fato. Típicos desprazeres de um crime capital. Nesses casos, a sustentabilidade do agora e do depois, tornou-se facilmente violável. Em seguida, motivados por uma contagiosa sensação de justiça, meio vintena de condôminos, aos prantos, subiram desordenadamente as íngrimes escadas manchadas pelo vermelho. Buscavam condenar o incondenável. E a pedido, o porteiro duplica a luminosidade interna dos corredores e escadarias. Os intensos focos luminosos propiciaram maior visibilidade aos que, desesperadamente, corriam em direção aos intransponíveis blocos de concreto residentes nos paradigmas sociais.

O adiantado da hora insistia no quase sonoro multiplicar dos seus segundos. No saguão, o tic tac do aparato de pulso desencadeava tremores. E após espantosos gemidos e suplícios, foram lacradas e não se sabe por quem e por que, as portas que dão acesso rápido aos corredores A e B. Com isso, ninguém poderia descer ou subir pelas escadas, elevadores ou plataformas de acesso. A partir daí, ouve-se uma sinfonia de protestos generalizados. Com o lacrar das portas, tem-se a inviolabilidade dos fatos. Desde a edificação deste gigante de aço e concreto contabilizam-se 13 misteriosas ocorrências. Pairam no ar inanimadas certezas e incertezas. Ainda há balburdia nos andares superiores, mas não há entrada, saída ou meio de fuga.

Desta forma, qual seria o paradeiro do assassino, digo, autor dos disparos?

Enquanto isso, na portaria, um tanto irritado, Alcides desiste da novidade musical para guardá-la dentro da gaveta dos pertences. Ele se ausenta novamente da cadeira, da mesa e das suas obrigações. Decide, então, buscar um meio de limpeza eficaz, pois foi agraciado com algumas manchas no seu quase amarelado uniforme branco.

O calor sufoca! Também, por isso, ele busca o banheiro auxiliar mais próximo com a finalidade de reduzir o rubor facial e os suores causados pelas altíssimas temperaturas dos últimos dias. Alcides, por onde passa, pinga e respinga manchas quase avermelhadas, mas o antigo banheiro está lacrado por um velho cadeado que o faz retornar até a portaria em busca da chave. Quando volta, o porteiro percebe a chegada de uma viatura policial. O sistema eletrônico é acionado e o vagaroso funcionário, aproxima-se da entrada principal. Com a porta entreaberta e com um tímido acenar de cabeça, ele presta as boas vindas ao policial.

ALCIDES: Boa noite, senhor! A que devo a honra desta visita?
POLICIAL: Boa noite! Chamo-me Breno, sou inspetor de polícia e recebi mais de 10 chamados de moradores revoltados que falavam de tiros e gritos nos corredores. Isso é muito grave.
ALCIDES: O chamado vem daqui mesmo? Não posso acreditar.
ALCIDES: O senhor tem certeza? Não estás confundindo a numeração? Aqui, tudo é muito tranqüilo jovem senhor.
BRENO: Absoluta certeza meu caro. Sou novo na delegacia, mas a notificação está bem clara. Desculpa, mas qual é o seu nome?
ALCIDES: Alcides.
BRENO: Por gentileza, necessito entrar o quanto antes no prédio e subir até o 21º andar, contatar com estas pessoas para saber o que realmente ocorreu.
BRENO: Alcides - poderia me dar licença?

Alcides aparenta leve desagrado com a insistência do Inspetor Breno, e, de alguma maneira, tenta obstruir a porta de entrada.

BRENO: E aí cidadão? Passo ou não passo?
ALCIDES: Ahnnn, hunnn... claro, claro doutor. Tenha a bondade de entrar.

Sendo vencido pelo oficial, o porteiro desobstrui a porta e libera a passagem

BRENO: Antes de subir, o senhor poderia anunciar-me?
ALCIDES: Sim, lógico, é pra já.

Sabendo que a comunicação telefônica estava propositalmente desconectada, Alcides, dissimuladamente, depois de certo tempo, informa que o ramal não respondia.

ALCIDES: Até agora nada, pelo adiantado da hora, devem estar dormindo. Deseja voltar amanhã?
BRENO: Negativo, subo agora. Porque há pouca luz? Onde estão os elevadores?
ALCIDES: Estas são as de reserva e os elevadores estão ao fundo, mas não funcionam. Terá que ir pelas escadas.
BRENO: Que barbaridade! Escadas?
ALCIDES: Sim, isso mesmo, escadas. Eventualmente, elas são as nossas únicas opções quando estamos sem energia.
BRENO: Tudo bem, mas antes de retornar, pretendo conversar um pouco mais com o senhor. Até mais...
ALCIDES: Até breve meu jovem! Ahnn! Cuidado ao subir, entre outras coisas, há pouca luminosidade.

Diante da ausência de Breno, subitamente, Alcides conecta o cabo telefônico e marca uma seqüência de números...

ALCIDES: Alô, alô! Como estão as coisas?
?????????: Muito estranho - tudo está calmo.
ALCIDES: Todas as portas fechadas?
?????????: Sim, mas antes tentaram forçar e agora há silêncio. Provavelmente, algum plano de fuga ou voltaram para os apartamentos. Algum problema?
ALCIDES: Sim, de última hora. Chamaram a polícia e o cidadão da lei acaba de subir as escadas que dão acesso ao corredor A. Ele busca o 21° andar.
?????????: Entendo, o pobre coitado encontrará a porta fechada.
AlCIDES: Faremos o seguinte: Assim que ele descer, provavelmente indignado, tu destranca a porta de ferro, faz bastante alarde para que todos ouçam, deixa ela aberta, sobe 3 lances de escada e aguarda. Os revoltados farão o trabalho pela gente. Depois de tudo isso, quero o teu sumiço.
?????????: Pode deixar, fico de olho, faço a minha parte e depois desapareço.

Marcado pela intensa sudorese provocada pela desgastante subida, Breno alcança o seu objetivo, mas encontra o portão de acesso chaveado. Inconformado, decide retornar até o térreo. Ao descer 5 lances de escada, escuta um forte estrondo proveniente dos andares superiores. Estático, com a arma em punho e bastante assustado, pensa em desistir, entretanto suas atitudes nem sempre são compatíveis com seus pensamentos.

O dever me chama, pensa em voz alta, o jovem inspetor que retorna com a cautela de quem teme pelo pior, mas ao se aproximar do 21° piso, o dedicado policial observa com espanto o portão, que, há pouco tempo atrás, estava trancafeado. Atônito, porém investigativo, decide avaliar as proximidades em busca de provas.

BRENO: Quem foi à criatura que abriu este portão, se não há absolutamente ninguém aqui perto? Que baita estrondo! Que coisa mais estranha!

Sem saber o rumo das coisas, Breno observa se há vestígios, aguça seus ouvidos, mas devido ao intenso calor, mergulha num transe hipnótico que o faz compartilhar intermináveis segundos de perplexidade e vazio dramático, porém eis que surge uma repentina e sufocante onda de histerismo que quebra o silêncio, faz tremer e abala as estruturas deste ermo, estreito e interrogativo corredor.

BRENO: Pelo amor de Deus, mas que barulheira de matar é esta?

Alguém está lembrado daquela meio vintena de indignados condôminos que percorriam os corredores em busca do autor dos disparos?
Pois bem, até que se prove o contrário, o elemento que dispara contra algo ou alguém, porta uma arma de fogo e, se abordado, geralmente, nega a autoria do disparo, é um suspeito em potencial. Baseados nestas hipóteses que, a partir de agora, e através de um líder, estes justiceiros condenarão um inocente à morte.

BRENO: Mas o que é isso? Quem são todos vocês? Calma lá - não se aproxime.
Olha aqui pessoal, sou da polícia e só venho para ajudar.
???????: Nada disso cidadão, aqui ninguém é otário. A justiça será feita!
BRENO: Quem faz a justiça sou eu e não vocês. Por favor, acalmen-se, pois faz muito calor.

Segundo a segundo, à distância entre ele o os moradores diminui. O nervosismo e o calor, agora muito maiores, invariavelmente deformam as 11 faces e Breno, na tentativa de esquivo, anda para trás até esbarrar em uma parede divisória. Encurralado, desolado, mas armado, reafirma:

BRENO: Chega! Para trás ou disparo.
???????: Disparar? Assim como fez com o pobre coitado. Atira logo de uma vez seu desgraçado...

Neste exato momento, o gatilho é acionado, mas para o azar do nobre e injustiçado policial, falha impiedosamente. Aproveitando-se deste fato, o líder o desarma e possibilita um terrível linchamento. Enquanto o sangue jorra e se escuta os últimos gritos de socorro, o mentor da barbárie some sem deixar rastros. Com a rapidez de uma lebre em fuga, o sujeito desce as escadas rumo à portaria, mas, ao se aproximar, é bloqueado por uma porta, que na verdade, neste momento, deveria estar aberta. Inconformado pelo desfecho grita o nome do porteiro.

???????: Alcides, Alcides, abre esta porta, fiz o que combinamos. Vamos rápido!

Passados alguns segundos de pânico, pelas costas, o interrogativo criminoso, é surpreendido pela irônica mansidão vocal do pacato Alcides, que profere a seguinte frase:

ALCIDES: Que calor odioso, não achas?
???????: Ahnnn??? Que susto!!! Abre esta porta de uma vez por todas! Larga esta arma, tudo está feito. Acabou!
ALCIDES: Estás absolutamente certo meu interrogativo amigo. Acabou, sim, mas para você.
???????: Que isso? E essa arma? Larga essa droga Alcides. Depois de velho, ficaste louco? To morrendo de calor!
ALCIDES: Ehnn! Exatamente, vais morrer de calor...

Sem pestanejar e com a frieza habitual, Alcides aciona o gatilho de sua Bereta. Ouve-se, então, novamente, um triplo e amplificado disparo proveniente de uma arma de fogo.

TAAHN, TAAAHN, TAAAAHN !

Alvejada e inanimada, assim desaba mais uma vítima do calor.

O tempo passa e as coisas mudam. Correto? Nem sempre é assim. O Residencial Goethe, por exemplo, permanece inalterado. Outra coisa inalterada é a vida de Alcides, que consiste no desfrute da sinfonia bélica dos seus disparos, no colecionismo e ocultamento de cadáveres e, para o seu próprio bem, na manutenção de um estilo pacato, vagaroso e até gentil de ser.

Leve e inofensivo quadro de esquizoidia?

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