sábado, 29 de março de 2008

O DIA D

NADA COMO UM DIA APÓS O OUTRO


Segunda-feira, 23 de outubro do presente ano, 8:45 min. da manhã. Faz calor na capital dos gaúchos, e o entrecortar, quase instantâneo, de automóveis e pedestres, dá vida, forma e um colorido gris a uma metrópole que inspira e expira ares de modernidade.

Como todo o desempregado que objetiva novos ares profissionais, saio em busca de soluções, melhores oportunidades e, munido de currículo, recorte de jornal e fé, fui até a Zona Norte da capital para ser entrevistado.

Eram 9:30 min. da manhã e lá estava eu com a minha pontualidade britânica a caminho de mais um recrutamento, que não era o militar, mas não menos exigente. Já, nas proximidades, percebi um burburinho de populares aglomerados em uma movimentada esquina e motivado pela minha nada britânica e bem brasileira curiosidade, alonguei meu pescoço para captar algumas instantâneas do fato que ali transcorria.

Havia indícios de pânico, coisa feia, por isso tive receio em me aproximar. Mesmo assim, estaqueado por alguns segundos, perguntei a mim mesmo: E se alguém estiver ferido, precisando de socorro imediato? Seria por bem ajudar! E aquela gente toda, interrogativas, com as mãos na cabeça, o que fazem se absolutamente não fazem nada? Não pode ser. Algo terei que fazer.

Subitamente, a coragem tomou conta do meu ser e, com bravura habitual, perfurei aquele círculo popular para prestar algum tipo de ajuda. Cena trágica! Tive medo e, por alguns segundos, pensei em voltar, dar marcha atrás, porém o que presenciava era forte o bastante para exigir o meu comprometimento. Assim que, não só permaneci, como agi de imediato. Como dizia meu avô, fiz o que deveria ser feito.

Havia um senhor estendido no chão, tipo comum de meia idade. Imediatamente, percebi a ausência de sangue no local e por dedução, entendi que se tratava de algum problema cardiovascular ou algo do gênero. BINGO! Eis o fato, digo infarto. Podia ser médico, até que enganaria bem ou faria rir.

Eu agia e os outros olhavam, palpitavam, e porque não dizer, rezavam por uma graça, bênção, ação dos céus. Benditos e sábios fiéis! Mal começavam a rezar, eis que apareci e desatei os nós.

Havia três, o primeiro era o da gravata, que como toda ingrata, tratava de sufocar ainda mais o pobre senhor. Não obstante, tive que agir rapidamente para esquadrinhar um nó maior, complexo, desconhecido por mim: os tais dos movimentos cardíacos seqüenciais ou simplesmente massagem cardíaca emergencial.

Nem mesmo eu acreditava, apenas segui os meus instintos. Num ritmo frenético, os minutos se passavam, uns choravam e outros gritavam. E o que eu mais escutava era: Cadê a ambulância? Chama o SAMU agora! Vai, vai, chama aí!

Corajosamente, segui com a massagem, mas já pensava no pior. Pensava alto: vai, reage, reage! Pura ânsia de vê-lo por mais algum tempo vivo, seja lá qual for, neste mundo agridoce. De repente, eis que todos os santos, outrora evocados, despertam dos seus respectivos sonos e resolvem, por misericórdia, atender as insistentes preces dos mais devotos.

Foi o terceiro nó que desatei, ou melhor, desatamos, pois o senhor adormecido, desperta, balança a cabeça e mesmo com dificuldade, volta a respirar. O pior havia passado, mas o melhor estava por vir, pois passei a escutar gritos dos mais diversos como: Meu Deus, ele consegui! Viva o moço! Rapaz, tu é um herói! Bendita mãe que te pariu! Entre outros.

Diante das expressões de euforia, percebi a magnitude da minha ação e ajoelhado, caí em lágrimas, copiosas e heróicas lágrimas. Logo em seguida, desenfreada, surge uma unidade móvel de tratamento intensivo. O médico desce, presta os primeiros socorros acadêmicos e percebe certa estabilidade no paciente. Uma ótima notícia, a melhor de todas, alívio geral.

Já, postado na maca, o senhor é levado ao hospital mais próximo. Um arrepio toma conta de mim e, em meio a tremores, recebo um forte aperto de mãos do médico, que antes de entrar na UTI, profere as seguintes frases: Não há palavras para descrever tal ato de bravura. Não há nada como um dia após o outro, meu jovem. Dia após o outro? Como assim? Enfim, saí perplexo, curioso. Anestesiado por tanta adrenalina, tomei vagarosamente o meu rumo, recebi alguns aplausos e acenei em tom de agradecimento.

Olhos para o relógio, já eram 10 horas e o atraso, evidente. Meia hora de atraso ninguém aceita! Desolado, baixei a cabeça, mas levantei meu espírito, pois acabara de salvar uma vida. Entendi, naquele momento, que havia sido aprovado na mais difícil e complexa entrevista da minha vida.

Bom, tudo volta ao normal e o que passou, passou. Pensando bem, quase tudo, pois as lembranças não passam, ficam, se alojam, permanecem inalteradas por anos, décadas ou, quem sabe, por vidas.

Eu sigo a galopar, e os dias se passam. Respiro aliviado, mas como muitos, sigo desempregado, financeiramente abalado, porém já dizia o velho poeta: dias melhores virão!

Seguramente virão!

Sexta-feira, 27 de outubro, 3 horas da tarde. Sigo na busca, agora, sem o menor atraso, estou na sala de espera, aguardando um chamado para mais uma entrevista, mais uma etapa a ser transposta. Na sala de espera, verifico os ponteiros, o horário se aproxima.

Bebo dois goles de café e penso na importante entrevista que estaria por vir. Analiso o posicionamento a ser adotado, e, em meio a estratégias, relembro dos meus tempos de adolescente em que usava e abusava de atos persuasivos para vencer, vender, ensinar e conquistar, belos exemplos de marketing pessoal.

Já que não disponho de amansa burro, tento articular algo que o convença, seduza, que o faça rir, descolar os secos lábios de diretor. Enfim, um insight, frase bem feita, uma ação bem dirigida de marketing.

A secretária da direção bate à porta, entra na sala, gentilmente me cumprimenta e diz mansamente que a acompanhasse, pois, logo, eu seria chamado para falar com o Senhor João Carlos, responsável pelo Departamento de Marketing. Fui conduzido até a ante-sala deste Senhor e lá permaneci por 10 minutos, tempo suficiente para ordenar as minhas ações pessoais. Assim que, permaneci sentado, refletindo, quase filosofando.

O tempo de espera se esgotara e a secretária permite minha passagem. Agradeci e entrei confiante, pronto para persuadir, emocionar, mas sabendo que poderia fracassar, ou melhor, não agradar, pois fracasso, é não tentar.

Entro na sala e lá está ele, de costas para mim, borrifando algumas plantas exóticas como se a tal entrevista fizesse parte de uma mera rotina. Ainda de costas, exclama com voz firme: sente-se rapaz, fique à vontade! Respondi: obrigado, senhor! Sentei-me de costas para ele, que ainda borrifava as tais plantas e em resposta ao meu agradecimento anterior, complementou: Senhor que nada, chama-me de João Carlos mesmo. Senhor só existe um.

Vou te contar uma breve história, nobre recruta. Que achas? Por mim, tudo bem. Respondi sem muita emoção. De repente, eis que o tal diretor se aproxima da mesa, senta-se em sua bela cadeira de couro, olha-me mansamente e diz: O que houve rapaz? Eu nem te contei nada e me vens com essa cara de susto. Vamos lá! Que tal um aperto de mão?

Do outro lado, estou eu, atônito, pálido. Não conseguiria, seria impossível mover-me, estava fora de mim. Suspirei, tentei voltar e como de costume, pensei em voz alta: Este senhor que acaba de me estender a mão é pura e simplesmente a pessoa que, na última segunda-feira, salvei a vida e o pior de tudo, ele mal desconfia, afinal estava desacordado, entre a vida e a morte. Vamos rapaz, estou esperando por um cordial aperto de mãos, repetia o senhor.

Tudo bem, tudo bem, desculpa, estava aqui a pensar com os meus botões. Rapidamente, e sem pestanejar, ele retrucou: que bom! Que maravilha! Pensar em voz alta é quase o mesmo que se posicionar de forma filosófica, madura, estratégica, não achas? Sim, absolutamente certo!

Pois bem, como eu ia te propor, devo contar um episódio que há pouco ocorreu comigo, pra ser mais exato, na última segunda, quando saía de uma rápida reunião de negócios num bairro não muito distante daqui. Sabe, foi incrível, difícil até de acreditar. Difícil de acreditar? Estás certo disso? Certamente que sim, poucos acreditariam. Foi um legítimo milagre, meu jovem.

Decido por levantar-me, tomo a palavra e provoco: vejamos, posso lhe propor um desafio? Dependendo dele, pode, claro. Veja bem, na minha condição de postulante a uma vaga aqui nessa empresa e com toda a humildade, a partir de agora, te desafio.

Mas no que consiste esse enigma, meu audaz e persuasivo recruta? Simples, consiste no seguinte: eu lhe digo em minúcias o que lhe ocorreu na segunda-feira, inclusive coisas que o senhor desconhece e, caso não haja discordância e tudo corresponda à verdade, peço que me efetive nessa renomada empresa.

Vejamos, tu estás tentando dizer que irá tirar as palavras da minha boca como num passe de mágica? Negativo, não sou um mágico, mas sou um homem sensível, sábio, estrategista e por que não dizer, persuasivo. Está bem, comentários à parte, fale exatamente tudo o que eu fiz na segunda-feira após ter saído dessa reunião. Se obtiveres êxito, considere-se mais um entre nós.

Dei início ao relatório e, na medida em que ia enumerando os fatos, o diretor franzia a testa e arregalava os olhos. Incrédulo, falava baixinho: como pode, como pode, meu Deus? Em tom de desabafo, meu discurso seguiu por mais uns 10 minutos, contei absolutamente tudo o que fiz e tratei de não esquecer nenhum detalhe. E o João Carlos? Seguia estupefato, desbotado, visivelmente emocionado.

Já estava por finalizar, quando fui interrompido pela mão deste senhor, que trêmula, emitia sinais de negativo. Não fale mais nada meu jovem enviado de Deus, mal posso acreditar que és tu o responsável pela minha permanência nessa vida. Então foste tu mesmo? Salvaste-me sem temer a nada? Com um meio sorriso, tratará de responder a pergunta.

Em seguida, levantei da cadeira, dei dois passos em direção a porta e afirmei: Missão cumprida, meu caro João Carlos! Estou de saída, mas aguardarei a sua resposta. Eis que antes de sair, ainda ouço: resposta? Impossível! Daqui só sairá se te encaminhares para o RH da empresa que fica na sala ao lado, portanto começas hoje mesmo, agora e ponto final.

Do outro lado, estava eu, emocionado, aliviado, 100 kg mais leve, orgulhoso pelo feito, feliz pela recompensa, mas ainda reflexivo por mais alguns segundos.Retrocedi e plasmei um pouco do passado: o que seria deste renomado Diretor se eu não estivesse por perto? Mais alguns segundos e ele fatalmente morreria. E o que teria sido de mim se aqui estivesse sem um passado conflituoso, sem base argumentativa, sem uma grande história para contar?

Ora, somos todos como produtos, com nomes fixados em rótulos, destinos, vida útil ou prazo de caducidade, verdadeiras marcas ambulantes. Saímos por aí a fora, vendendo, propagando nossos ideais, nossas virtudes ou nossas mazelas.

Quando salvei este homem, propaguei um ideal, uma boa ação, nobre ação. Neste caso, também, uma ação de marketing pessoal, fraternal e humanitária.

Os largos meses de angústia e busca incessante por trabalho enfim terminavam. Estou renovado, sou um novo homem, verdadeiro conquistador.

Nenhum comentário: